Ilustração Portuguesa, n.º 835, 1922 Crónica de Macau I

… São a lórchas que vão para a faina do dia! De prôa erguida e pôpa a meter a pique, todas vão seu caminho, fugindo-se mutuamente, do pantanoso rio.

Lá se vira aquela! …
Mas, não! Um puxãosinho do lado inverso das rizes de bambú a servirem as velhas esteiras de vela e ei-la a pico! A pico, porque o afan e a experiencia do velho pescador o exige!
A experiência, dizemos. Ele ali nasceu, ali vive, e ali vai morrer. A lórcha é todo o seu mundo!
Aquelas paredes paralelas entre si e perpendiculares à quilha formam a sua casa e a da numerosa família. Lá está o seu templo ao centro… com as tabelas onde vivem as almas dos seus antepassados, os pivetes ardentes, as tijelas microscópicos, o capão assado, os dôces, chá e outras vitualhas que a liturgia confuncionista indica. O homem do mar, lá tem a sua cozinha patriarcal de um só fogão de barro, o galo que sacode as barbaças e a cabeça com destemperados quim-qui-ri-quis, o cão de focinho de raposa a colocar-se diante do gato, velho amigo, que se esperguiça fazendo o espinhaço num arco, a mulher, a filha, a neta que atam os filhos ou irmãos às costas.

Ilustração Portuguesa, n.º 835, 1922 Crónica de Macau II

É ali que o pescador tem os seus passatempos, as suas esperanças, os seus progressos, estorvados apenas quando as necessidades o obrigam a vir a terra.
Só ali é rei, só ali é livre, só ali é feliz!
Contente com Deus, contente com os homens, contente com os elementos, aquele homem semi-nu e de escura tês e faces grotescas…

Crónica de Barbosa Pires datada de 15 de Maio de 1920 e duas ilustrações,  publicadas na “Ilustração Portuguesa”, n.º 835, 1922, pág. 165.