“Data de muitos anos, em Macau, a existência destes modestos trabalhadores, figuras típicas deste Oriente sempre desconhecido, exótico e fértil em sensações.
Condutores de riquexós (1) – veículos para transporte de um passageiro – os cules (2) simbolizam a velha e tradicional China, onde se trabalha indiferente à natureza do serviço, ainda que este pela sua qualidade nos pareça vexatória de dignidade humana.
No seu jeito característico e com uma passada de cadência matemática , palmilham diariamente – na melhor hipótese de numerosos clientes – alguns bons quilómetros.
Condutores de riquexós aguardando os clientes
Tomando apenas ligeiras refeições de arroz ou massa com peixe ou carne, ou a tijela de canja, percebe-se que não são indivíduos dotados de muita força. Possuem, no entanto, uma resistência inconcebível na sua corrida de fraca velocidade, mas sempre igual, em contraste com a sua aparência franzina e débil.
Desconhecedor dos costumes e tradições do Oriente, qualquer europeu ou americano que desembarque em Macau, sente uma desagradável impressão pelo quadro desumano ao ver um homem acarretar com outro, qual quadrúpede, num panorama idêntico à besta que puxa a carroça em qualquer terra da nossa metrópole. Não há dúvida, porém, que são mais carregadas as cores do cenário que a realidade dos factos. Segundo eles próprios confessam, não é a força o elemento principal a considerar, pois as ruas onde, estes carros transitam são, na sua maioria, planas e cimentadas.
À partida, após o esforço inicial no arranque do carro, que possui as duas rodas forradas de borracha , a virtude dos condutores está em conseguir manter o carro em equilíbrio e toada certa , conservando sempre o impulso primitivo, o que conseguem colocando as mãos nos varais de modo especial.
E depois, no género de trotar, ritmo compassado, sem grande esforço, exceptuando numa ou noutra rua um pouco íngreme, lá seguem, lestos, sem frouxidão, na ânsia de bem servir.
À falta de passageiro, utilizam o veículo para transporte de muitas e variadas coisas, causando, por vezes, profunda admiração, a quantidade de peças de mobiliário que acomodam num tão pequeno carro.
Os cules, na sua maioria, não têm horário definido para tomar as suas parcas refeições. Comem a qualquer hora, a sua tijela de arroz ou massa, com um pouco de peixe ou carne, servindo-se de ordinário, dos cozinheiros ambulantes que abundam pelas ruas de Macau.
No estacionamento, nas horas de ócio, conversam com grande alarido.
Como distracção, vão uma vez por outra ao cinema, ao jogo de bolinha (futebol em miniatura) e só com grande sacrifício assistem ao Auto-China, espectáculo demasiado dispendioso para as suas reduzidas possibilidades financeiras. Como, aliás, quase todos os chineses, são singelos no seu trajar, e a sua indumentária, simples e prática, adequa-se bem à função que desempenham. Em pleno Verão, cálido, saturado de humidade, temperatura asfixiante, quase insuportável, usam apenas camisola, calção e alparcatas, trazendo alguns o característico chapéu largo «tudum», (3) feito de fibras de bambu forradas de folhas de palmeira, para a chuva ou sol.
Nos dias chuvosos, vestem um impermeável o «so-i», (4) feito apenas de folhas secas de palmeira.
Em 1951 foram introduzidos em Macau os triciclos que comportam dois passageiros, veículos menos bárbaros à vista do visitante, mas que obrigam os cules a um maior esforço na sua condução.” (5)
Com a introdução dos triciclos que chegaram a circular cerca de mil, o número de riquexós diminuiu progressivamente até ao seu desaparecimento. Creio que na década de 60 já não existia nenhum riquexó para transporte de passageiros embora recorde de um ou outro ainda a circular, levando mercadorias. Os triciclos por sua vez, como transporte público permaneceram até a década de 70 e hoje (escassos) são só para o transporte de turistas.
(1) Riquexó, “rickshaw” ou jerinchá – 人力車 (mandarim: rén li che; cantonense jyutping: jan4 lik6 ce1) é o meio de transporte humana em que uma pessoa puxa por uma carroça de duas rodas. Os primeiros jirinkshás (riquexós) terão surgido em Macau em 1883.
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(2) Cule era um trabalhador chinês, carregador, estivador, puxador de riquexó, condutor de triciclo, etc. Várias hipóteses para a origem deste termo, desde meados do século XVII: do hindi/urdu «qulī» que significa “trabalhador(diário)”; do tribo natural do Guzerate «kulī», com o mesmo significado; palavra tâmil «kuli», salários.
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(3) Um dicionário online define tudum (substantivo, masculino) como um termo de Macau significando «capucha preta, usada por senhoras»
http://populu.net/tudum.
No entanto o correcto é a definição da professora Graciete Batalha: “chapéu feito de ola e coberto de tiras de bambu entrançado, usado pelos pescadores e trabalhadores chineses (homens e mulheres) para se protegerem quer do sol, quer da chuva”. O termo possivelmente no passado terá vindo do malaio «tudong», identificando-o com o “dó preto, bloco usado pelas damas macaenses ” (Glossário do Dialecto Macaense, 1977)
(4) 水衣 (mandarim pinyin: shuǐ yī; cantonense jyutping: seoi2 ji1 – água+cobertura/vestimenta
(5) Retirado de «Macau B. I.,1953»