“Manuel Correa de Lacerda (1) tendo embarcado para Madrasta logo depois que a Náo do Reino chegou, deixou entre os mais Escravos hum Timor, já não muito moço, que neste dia sobio pela escada acima, e entrou pela salla dentro com hum parão na mão, e outro na cintura encaminhando-se para sua Sra. (2) a qual assim que o vio fugio como pôde e se fechou em hum quarto gritando pelos outros Escravos, e mais Gente que lhe acodissem, e amarrassem o escravo Timor. Acodindo os Escravos e mais gente até os que passavão pela rua a este motim, que querendo pegar-lhe , elle se defendia fortemente com o parão e pedaços de bambús aguçados como flexas de que estava provido, mas vendo-se embaraçado dentro da Caza, por cauza de huma prancha que estava armada para se pintar o tecto, e vendo que os outros Escravos, e mais gente se não attrevia a chegar a elle com medo do parão que tinha na mão, saltou de huma Janella para a orta e se foi pôr em cima de huma arvore donde á sua vontade offendia com os pedaços de bambús a quantos se chegavão. A vista de huma resistência tão forte, se dêo parte ao Governador, que mandou Soldados, mas elle zombando destes se mandou pedir a tropa da Fragata, que teve ordem para lhe atirar, e mattá-lo. Elle era tão feiticeiro, e estava tão possuido do Demonio que as ballas lhe não penetravão o Corpo e cahião no chão e tornava a attiar com ellas aos Soldados e com os bambús aguçados que muitod dos Soldados ficarão feridos, e depois saltou da arvore e com o parão na mão abrio o caminho e se foi mether em hum Gudão cujas portas trancou por dentro. Ninguem se attrevia a arrombar a porta e só hum Soldado da Fragata se athreveo a quebra-la mas ao entrar dentro o Timor lhe dêo huma Cutilada nas costas desde o toutiço até as cedeira que o fes cahir entre a porta, e para se curar levou 14 dias digo 14 pontos, mas não morreo. Neste intermedio que o Soldado cahio entrarão os outros, e os moços derão-lhe com bambús de forma que o botarão no chão, e tirarão os parões e levando-o de rastos para a orta o accabarão de mattar por se não querer render. Depois de morto o arrastarão pelas ruas da Cidade, e no vasar, do Campo chamado do Mandarim, lhe cortarão a cabeça que foi posta em huma estaca á porta da sua Snr.ª até que ella a mandou tirar por cauza do máo cheiro. Se hoje se fisesse destes castigos para exemplo dos Escravos, serião certamente menos attrevidos. A caza em que assistia esta Snr.ª he a que foi de Joaquim Carneiro” (3)
(1) Não tenho a certeza mas deverá tratar-se de Manuel Correia de Lacerda (Lisboa ?? – Timor 1751) que foi governador de Timor (1746-1751).
“Foi para Macau em data incerta, mas certamente alguns anos antes de 1732, data em que é eleito juiz ordinário da Câmara de Macau, sabendo-se que era proprietário do barco «N.ª Sr.ª da Conceição e Almas Benditas», que navegava para a Costa do Coromandel. Em 1744 era vereador do Leal Senado e em 1747 foi nomeado governador de Timor, em sucessão a Francisco Xavier Doutel, que já falecera.”
FORJAZ, Jorge – Famílias Macaenses, Volume I (A-F). Fundação Oriente/Instituto Cultural de Macau, 1996, 1140 p., 27 cmx 19,5 cm, ISBN 972-9440-60-3 (FO)
(2) Trata-se da 2.ª esposa de Manuel Correia de Lacerda, Joana de Abreu Sampaio (nascida na Sé, a 17-06-1702) – casou na Sé em Fevereiro de 1728.
(3) Retirado de BRAGA, Jack M. – A Voz do Passado. Instituto Cultural de Macau, 1987, 78 p.