Transcrevo parte do conto “História do pequeno Afat“, tirado do volume “Traços do Extremo Oriente” de Wenceslau de Moraes (Lisboa 1854 – Tokushima 1929) (1) (2)
“Passara uma tromba marítima… O povo de rabicho ouvia-nos, e ria-se sarcàsticamente das nossas teorias.
Fora o Long, o dragão que passara.
Nos velhos tempo da China, passeavam os dragões cá por baixo, monstros terríveis, que simbolizam ainda hoje para esta gente a suprema força e a suprema audácia. A tradição guarda bastantemente os seus traços dominantes para que se lhes possa reconstruir a forma. Ali estão eles, nas porcelanas rendilhadas das coberturas dos templos; nas alfaias do culto; nos antigos bronzes; nos mil produtos delicados a indústria de hoje; ei-lo, coruscante e altivo, o dragão heráldico, estampado no pavilhão amarelo do império, sintetizando o poder supremo daquele que do trono de Pequim governa os seus quatrocentos milhões de vassalos.
Se interessa a ocidentais o retrato do monstro, eu vo-lo pinto. Réptil imundo, participando do lagarto e da serpente, mas diferindo de tudo que a imaginação possa conceber. Corpo onduloso e hercúleo, rastejando, rutilante de escamas multicores; patas curtas e robustas, terminando em garras aceradas; cauda erguida, lanceolada, mas é a cabeça que mais o caracteriza, a sua enorme cabeça disforme, de pontas proeminentes, barbas fulvas, tentáculos façanhudos, a cavernosa goela escancarada, patenteando a alva dentadura de fera e língua em serpentina; e sobretudo os seus grandes olhos esbugalhados, estoirejando fora das órbitas, faiscantes de cólera… Um todo assombroso, com este predicado particular para a nossa apreciação decrescente de bárbaros: a aliança do horrível e do grotesco – que resulta afinal de contas de todos os símbolos do culto da família chinesa.
Sabe-se que estas alimárias passaram a habitar desde o undo dos céus. Uma só ficou por cá. Foi-lhe defeso o ingresso por não ter cauda, pois lha cortou um dia, por desfastio, um certo moço. Anda pois a penar pela terra, e afirmam até que não muito longe de Macau, ali para San-hui…(…)
E o dragão havia passado em Macau…”
(1) Este conto está incluído na “Antologia do Conto Ultramarino“, selecção da novelística ultramarina feita por Amândio César, para a Editorial Verbo (livros RTP), 1972, 280 p. + 6
(2) MORAES , Wenceslau – Traços do Extremo Oriente. Depósito Livraria Barateira, Lisboa, 1946, 265 páginas