Memorial (Relatório) do cirurgião-mor Domingos José Gomes, (1) de 6 de Outubro de 1822, enviado ao Senado «Sobre as enfermidades que mais cometem a tropa de Sua Majestade»
“Tabes ou convulsões dorsais – vulgo tísicas – , obstruções e cirroses, tanto do fígado, como do mesentério, vício sifilítico ou gálico, hidropisias, ascites, algumas disenterias e finalmente febres que, relativamente às moléstias acima ditas, são poucas.
Do continuado alimento de peixe, ora salgado, ora fresco, mariscos, continuamente adubados de grande quantidade de açafrão, pimentos e muitas espécies aromáticas e calefacientes, que só por si depravam as túnicas do estômago e conseguintemente, alteram os sucos digestivos tão essenciais à digestão … O excessivo uso de um vinho que os chinas extraem do arroz e que o vulgo, em razão dos seus estragos, chama «fogo», tão acre e tão corrosivo que arruína e dá cabo em poucos meses do indivíduo mais valente que a ele se aplique. Principia por obstruir-lhe as entranhas do baixo ventre, reduzindo-o absolutamente e tornando-o até incapaz do serviço mais leve, quando não termina, como mutas vezes observei, por uma rápida e violenta hemoptise, que em breve conduz o paciente à morte …
A incontinência, que se pode considerar como um efeito ou corolário das premissas acima declaradas, é, também, outra não menos fatal à tropa, pelo continuado estímulo da comida tão condimentada e a bebida excitante, impelindo à satisfação das suas paixões carnais, contrai com a maior facilidade o vício gálico e às vezes duma natureza tal que, resistindo ao mais bem ideado tratamento, conduz muitos dos doentes à sepultura …” (2)
(1) Domingos José Gomes exerceu o “serviço de cirurgião-mor das tropas que guarnecem a cidade” conforme o requerimento que apresentou em 1803 para a concessão da respectiva carta-patente.
O Major Comandante da unidade – Manuel da Costa Ferreira declarava: «ter ele cumprido com toda a satisfação, por espaço de 6 meses … em que mostrou todo o zelo e actividade no Real Serviço, curando não só de cirurgia, mas também de medicina … por isso merecendo toda a confiança e contemplação de que se faz digno … »
“Em consequência do fracasso na revolução liberal de 1822, em que figurava no número dos pronunciados, logo a seguir ao chefe do movimento – o tenente-coronel Paulino da Silva Barbosa – após essa data, nada mais aparece referente aquele assíduo funcionário, (Domingos José Gomes) que por lá trabalhou, activamente, pelo menos 19 anos.”
Só o Ouvidor Miguel de Arriaga, em ofício de 8 de Março de 1823, para informar sobre alguns indivíduos, escrevia:
“Domingos José Gomes, português, europeu, cirurgião que era do Partido da Cidade e que para obter foi necessário demitir o que então servia. Homem solteiro, a quem se permitiu deixar o Partido para melhor fazer o seu comércio no tráfico do anfião, onde foi admitido como qualquer dos outros Moradores aqui estabelecidos. Foi tão abonado na Real Presença pelo abaixo-assinado que, em 20 de Julho de 1814, mereceu ser condecorado como Hábito da Ordem de Cristo. O seu génio desconfiado, pouco quieto ou grato, não é a um só conhecido …” (2)
Domingos José Gomes, refugiou-se em Cantão, em 23 de Novembro de 1823, após a queda do Governo Constitucional (a Constituição foi jurada no Leal Senado em 1822) juntamente com os liberais Fr. António de S. Gonçalo Amarante, o editor de “A Abelha da China” (órgão do partido constitucional) e João Nepomuceno Maher.
(2) SOARES, José Caetano – Macau e A Assistência, 1950, pp. 109.