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“O ano de 1932, tão sombrio em tantos aspectos, teve também as suas compensações, principalmente no campo artístico e do espectáculo. A companhia portuguesa Grande Tournée Teatral às colónias continuou a dar as suas representações (…)”

“O cinema continua a ser o divertimento favorito da população, mas a comunidade portuguesa tem entre si uma novidade. É a visita da Tournée Teatral Portuguesa às Colónias que, depois de se exibir em África e em Goa, chega a Macau. O grupo é constituído pelas actrizes Eveline Correia, Dolores d’Almeida e Salete Barros e pelos actores Manuel Correia, José de Arêde Soveral, Carlos Barros e Artur d’Almeida. Propõe-se dar uma série de representações e “A Voz de Macau” anuncia que tem a colaboração activa do Grupo de Amadores de Teatro e Música e mais das Mlles. Edith da Costa Roque e Maria da Costa Roque.

O teatro D. Pedro V tem uma temporada que reputamos de ouro. O mês de Fevereiro é praticamente preenchido pelas representações da Tournée que foi muito aplaudida, muito apoiada, deixando uma larga lembrança em Macau, pois nunca mais nos visitou qualquer outro grupo de teatro português. Os nossos hóspedes estreiam-se com o teatro do Largo de Santo Agostinho literalmente cheio, com a deliciosa opereta “A Mouraria“. (1) É um êxito. Dos amadores locais, intervêm Mlle. Edith da Costa Roque, Henrique Machado e Danilo Barreiros. A direcção musical ficou a cargo de Bernardino de Senna Fernandes, do Grupo dos Amadores de Teatro e Música. Estamos a 11 de Fevereiro.

No dia seguinte, representa-se a revista “No Balão” e em 17 apresenta-se o drama “Um Milagre de Fátima“, muito apreciado e louvado pela gente devota da terra. Ainda no mês de Fevereiro, exibir-se-ão a revista “Jardim da Europa“, a comédia “A Boneca Alemã“, a opereta “João Ratão” e a revista “Estava Escrito!”. Os membros da Toumée eram bons actores, pisando o palco com extraordinário à vontade. Foram eles que muito ensinaram os amadores de teatro que uns anos mais tarde formariam a Academia de Amadores de Teatro e Música, com os irmãos Carvalho e Rego, Henrique Machado, Lucília e Mário de Campos Néry, Vizeu Pinheiro, Jaime Bellard e outros.” (2)

(1) A opereta “Mouraria”, foi estreada em Portugal, em 1926, com texto de Lino Ferreira, Silva Tavares e Lopo Lauer, sendo a música do maestro Filipe Duarte. Foi encenada por Francisco Ribeiro, no Teatro Apolo (Lisboa). Ficou marcada por um assinalável triunfo da actriz e cantora Adelina Fernandes na personagem da Cesária.

2) FERNANDES, Henrique de Senna – Cinema em Macau III (1932-36)

(3) Fado da Cesária, Filipe Duarte, Silva Tavares, Adelina Fernandes, Opereta Mouraria, 1º acto, Teatro Apollo, Sassetti & C.ª Editores, s/d. http://www.icm.gov.mo/rc/viewer/30023/1797 (3) https://www.museudofado.pt/colecao/partitura/fado-da-cesaria-filipe-duarte-silva-tavares-adelina-fernandes-opereta-mouraria-1o-acto-teatro-apollo-sassetti-ca-editores-sd

 “A mesma Primavera (1934) trouxe também outro acontecimento, este, de grande importância para a vida cultural e artística de Macau – a aprovação dos estatutos da Academia dos Amadores de Teatro e Música. Daí por diante Macau tinha uma agremiação destinada especificamente para a arte musical e cénica. A Grande Tournée Teatral às Colónias, que partira em 1932, deixara raízes e havia grande entusiasmo entre certos amadores para a arte de representar. Isto, principalmente, porque ficara entre nós um dos actores, José de Arede Soveral, agora funcionário público, depois que bebera a “água do Lilau”.

1-09-1934 – Quanto à vida artística, preparava-se para a estreia das actividades da Academia de Amadores de Teatro e Música. Durante o verão, porque a agremiação ainda não possuía instalação própria, os ensaios realizavam-se na casa de Bernardino de Senna Fernandes, à Praia Grande. Em dias marcados da semana, enchiam-se as salas de sócios, em serões onde o sério se misturava com o bom humor e vontade de cumprir. Chamou-se sarau à estreia da Academia, que teve lugar no dia 1 de Setembro. Foi uma noite admirável e inesquecível de arte, contribuindo todos os participantes com o melhor do seu esforço para o êxito da empresa. Eram cerca de cinquenta os amadores. Houve uma parte cénica e outra musical. Na parte teatral apresentaram-se duas peças de um acto cada. Quanto à parte musical, houve solos de violino, canto e violoncelo, conjuntos corais e de orquestra, um trio que tocou o “Trio Opus 49” de Mendelssolm. Os amadores que se responsabilizaram pela parte cénica foram: Lucília de Campos Néry, Maria Helena de Menezes Ribeiro, José de Arede e Soveral, D. João de Vila Franca, Mário de Campos Néry, os irmãos José e Francisco de Carvalho e Rego, Henrique Teixeira Machado e Henrique de Serpa Pimentel.

A orquestra teve a seguinte composição: Regência – Bernardino de Senna Fernandes; piano – Maria de Natividade de Senna Fernandes; violinos – Joseph Pasquier, Luís Baptista, Alberto Barros Pereira, Francisco Freire Garcia, Carlos de Mello e Jorge Estorninho; violoncelos – Cipriano Bernardo e Evaristo Carvalho; flauta – Edmundo de Senna Fernandes; saxofone – Emídio Tavares; cornetins -Alberto Ângelo e Pedro Coelho; trombone – Jacinto Azinheira; contra-baixo – Lúcio Carion e bateria – Fernando de Albuquerque.

Os coros eram formados por: Arcádia Borges, Arminda Borges, Amália Rodrigues, Eduarda Amaral, Maria Helena de Menezes Ribeiro, Júlia Maria Garcia, Lília Mello, Lucília de Campos Néry, Maria Amália de Carvalho e Rego, Maria José Amaral e Renée de Senna Fernandes, Amadeu Borges, Cláudio Vaz, Eduardo da Silva, Francisco de Carvalho e Rego, José Freire Garcia, Henrique Teixeira Machado, Henrique de Serpa Pimentel, José de Arede e Soveral, José de Carvalho e Rego, D. João de Vila Franca, Luís Gonzaga Gomes, Mário de Campos Néry e Pedro Ângelo Jr.

Um dos números mais aclamados pela sensibilidade dos artistas foi o trio que tocou a obra de Mendelssolm. Esse trio era composto por Maria Amália de Carvalho e Rego (piano), Bernardino de Senna Fernandes (violino) e Cipriano Bernardo. O êxito foi um impulso para que os amadores continuassem na sua obra artística e educadora. Daí que, imediatamente, se prepararam para levar à cena, a primeira peça de fôlego do seu programa “O Poço do Bispo.”

FERNANDES, Henrique de Senna  – Cinema em Macau (1932-1936). Revista de Cultura N.º 23 (II Série) Abril/ Junho 1995. Instituto Cultural de Macau, pp. 133-170.

O Caso do Tesouro do Templo de “Á-Má”, novela policial de Francisco de Carvalho e Rêgo, (1) foi inicialmente publicada na Revista Renascimento de que foi fundador e redactor principal,  com o pseudónimo de Frank Moth.
Nesta edição (2) refundida e aumentada, o autor refere (p. 7 – Explicando) que a novela não nasceu de mera fantasia, “ porque são reais as suas personagens, como real é o simples entrecho que fielmente conservou na intenção única de reviver, tanto quanto possível dentro da verdade, um caso que foi muito falado e que a crueldade do tempo fez esquecer.
Não há antigo residente desta colónia de Macau que não tivesse conhecido o chinês Lau-Hong-Sin, chefe da Polícia de Investigação Criminal, decidido detective a cuja inteligência e astúcia, aliadas a grande amizade a Portugal, muito deveu esta cidade, pela tranquilidade e sossego, que sempre desfrutou.
Lau-Sin morreu há cerca de sete anos, já velho e cansado e talvez esquecido de muitos que deviam ter-lhe dispensado, nos últimos anos de vida, maior consideração e melhor carinho. Havia já muito tempo que o ousado polícia gozava os magros rendimentos de uma pensão de reforma, que ganhava arriscando a vida e o futuro dos seus.
Conheci Lau.Hong-Sin muito de perto e costumava passar algumas horasm de boa conversa com o velho detective, que muito tinha que contar.
Lau – Sin servira na Procuratura dos Negócios Sínicos, onde meu pai, o Dr. José Maria Ernesto de Carvalho e Rêgo, desempenhou o cargo de Procurador, durante alguns anos.
Foi numa tarde chuvosa de um quente dia de Verão que o destemido polícia me contou, a traços ligeiros, a façanha que aqui deixo em pequena novela descolorida, sem dúvida, mas plena de verdade (…)
Capítulo I – No Ano Novo Chinês
Há cerca de quarenta anos, numa noite fria e molhada de Fevereiro, parecia interminável a romaria de fiéis que ao Templo de Á-Má se dirigiam para agradecer os benefícios recebidos durante o ano que findava e pedir felicidade e prosperidade para o ano a chegar.
A população marítima dos Tous, Tèangs e Tancás, ancorados no porto interior, não cessava de dar graças ao Alto, e as oferendas e promessas iam sendo registadas pelos bonzos do Templo, que rejubilavam de tanta fé.
O tesouro do templo estava exposto aos olhos dos fiéis, e tantas eram as oferendas, que algumas tiveram de ser recolhidas no interior, antes mesmo de terminada a cerimónia.
Consistia o tesouro numa imagem em bronze e ouro, da Santa Venerada. A túnica, que a envolvia, toda de ouro, era debruada a rubis e esmeraldas, prendendo em laço, junto ao peito, por um fecho que consistia de dois brilhantes, aos quais, os entendidos atribuíam um valor extraordinário.
Não era muito antiga a imagem e nem mesmo os bonzos sabiam dizer quem a oferecera ao Templo.
Dizia a lenda, bem recente, que uns anos antes, por ocasião de uma terrível trovoada, que caíra sobre a cidade, uma faísca atingira o altar e, logo que o fumo desaparecera, a imagem surgira, para espanto e admiração dos velhos bonzos.
No interior do Templo, havia uma velha arca de pau-preto, marchetada de cobre, que fechava com velhos cadeados de segredo, onde a imagem era guardada, findas as cerimónias, arca que estava a cargo do velho bonzo Lau, que por ela daria a vida, se necessário fosse, tão grande era a honra de ter à sua guarda a venerada relíquia. (…)

(1) Francisco de Carvalho e Rêgo (Coimbra, 1898 – Lisboa, 1960), viveu em Macau cerca de 40 anos. Autor de várias obras, além desta novela policial,  “Da Virtude da Mulher Chinesa” (1949), “Cartas da China” (1949) e “Macau” (1950-. Com uma actividade cultural diversificada, Francisco de Carvalho e Rêgo, também conhecido por Francisco Penajóia, foi ainda fundador da Rádio local, estando também ligado à criação da Academia de Teatro e Música e da revista Renascimento.
Anteriores referências em:
https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/francisco-de-carvalho-e-rego/
(2) REGO, Francisco de Carvalho e – O Caso do Tesouro do Templo de Á – Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949),87 p. 18 cm.

Continuação do testemunho de Francisco de Carvalho e Rego (1) (2)
De ali, pela tortuosa rua do Gonçalo, apertada e estreita, era o visitante conduzido até à calçada do Governador, por onde vinha dar à “Praia Grande”. E, chegado ao fim da Calçada, à direita tinha o edifício das Repartições Públicas, e à esquerda o pequeno edifício dos Correios, ao lado do qual se mostrava em suas arcadas, tão próprias da arquitectura das cidades cosmopolitas do oriente, o “Hotel Macau” modesto e simples, onde o velho inglês Farmer (3) e sua família recebiam acolhedoramente os hóspedes.
Aquele que viesse encomendado ao “Hotel Bela Vista”, ao deixar a ponte-cais, dirigia-se pela Calçada do Gamboa à Rua do mesmo nome e, seguindo pela Rua do Seminário, entrava no Largo de S. Lourenço, alcançando a Penha pela Rua do Pe. António  e Rua da Penha, indo dar ao chamado Chôc-Chai-Sat  onde , no referido Hotel, era recebido pelo velho Vernon, (4)  que, de há muito, explorava, na Colónia, a indústria hoteleira.

A residência de Verão do Bispo da Diocese (final da década de 40, século XX)

Mas não eram estes os hotéis recomendados aos funcionários chegados à Colónia, porque os seus preços eram elevados. Para estes funcionários era mantido pelo velho Mami o “Hotel Ocidental” modesto e pouco dispendioso e que, situado também na Praia Grande, oferecia ao visitante a mesma vista agradável, que lhe era apresentada nos outros hotéis.
A Praia Grande tinha os seus encantos: bela vista sobre as águas; passeio à beira-mar; brisa do mar, sombra das árvores e a música aos domingos, à noite, que tocava em frente do palácio do Governo e às quintas-feiras no jardim de S. Francisco.
Os únicos meios de transporte, que havia, eram o rickshaw e, a cadeirinha, espécie de palanquim transportado por dois ou quatro homens.
Era a Praia Grande pavimentada a macadame e o resto da cidade quase todo calçado à portuguesa.
Viam-se na Praia Grande as residências dos Primeiros e Segundos Condes de Sena Fernandes, de Carlos Pais da Assunção, de Luís Aires da Silva, do Major Aurélio Xavier, do General Garcia, José Ribeiro, Simplício de Almeida, Dr. Álvares, Constâncio José da Silva, Alexandrino de Melo, da Família Eça, do Capitão Carneiro Canavarro, etc.
E algumas viviam os chineses Lam-Lim, Chou-Sin Ip, Li-Kiang-Chin, Chan-Fong e outros.
(1) Extraído de REGO, Francisco de Carvalho e – Macau … há quarenta anos in «Macau». Imprensa Nacional, 1950, 112 p.
(2)Anteriores referências em
https://nenotavaiconta.wordpress.com/2017/08/10/leitura-macau-ha-cem-anos-a-chegada-i/
https://nenotavaiconta.wordpress.com/2017/08/16/leitura-macau-ha-cem-anos-a-chegada-ii/
https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/francisco-de-carvalho-e-rego/
(3) O Sr. Farmer comprou o “Hotel Hin-Kee” em Maio de 1903, para transformá-lo no “Macao Hotel”, porque não conseguiu, como era seu desejo, arrendar o Hotel sanatório “Boa Vista”, que em 1901 foi expropriado pelo governo e cedido/vendido  à Santa Casa de Misericórdia por 80 mil patacas.
(4) O súbdito francês A. A. Vernon tinha um projecto de contrato de jogos em Macau em 1909 mas não chegou a concretizar por não ter tido a autorização do Director-Geral da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Em 1910 é-lhe concedida licença para a circulação de automóveis em Macau e solicita idêntica autorização de Cantão em 1911 para poder encarregar-se de transportes viários entre Macau e Qiang Shan (Casa Branca para os portugueses)   A. Vernon geria o “Hotel Boa Vista” (arrendado à Santa Casa de Misericórdia) e queria trespassá-lo em Janeiro de 1913 para G. Watkins mas não foi aprovado pelo Governo. Depois de vários outros posteriores arrendamentos (o Liceu de Macau esteve aí instalado até passar ao Tap Seac) o Governo compraria em 1923 o Hotel à Santa Casa de Misericórdia por 82 585 patacas.

Continuação da leitura de Francisco de Carvalho e Rego, publicado em anterior post (1):

As três curvas da Baía da Praia Grande (final da década de 40, século XX)

“… Então, o cunho português desaparecia, surgindo o aspecto de um a pequena cidade chinesa, que a avenida marginal do Porto Interior revelava aos olhos cobiçosos do observador.
O peixe estendido pela via pública, exposto ao Sol, na salga que o chinês faz a capricho, espalhava pelo ar um aroma desagradabilíssimo que, de mistura com o cheiro de hortaliças salgadas, do balichão e outros produtos da indústria explorada, confundia e perturbava quem a ele não estivesse acostumado.
Altos rickshaws, pintados a vermelho, com aros de ferro nas rodas, cruzavam a rua em correria, sem que os peões se afastassem, apesar dos altos gritos dos cúlis.
O casario baixo e sujo igual em toda a Avenida marginal, sendo os baixos utilizados para comércio e o primeiro e único andar para moradia.
Junto ao cais de desembarque viam-se muitos rickshaws, e cúlis segurando longos e grossos bambus, prontos para a descarga.
Serviço da polícia marítima, rudimentaríssimo, era feito nos cais por um ou outro indiano, auxiliado pelos chamados loucanes, que vestiam uniforme curiosíssimo, com meias brancas por fora das calças e pequenos chapéus feitos de filamento de bambu.
O policiamento das ruas pertencia aos soldados de infantaria que, de grandes chapéus de aba larga, se lobrigavam de quando em vez, aqui, ali, ou acolá.
Desse cais do porto interior caminhava-se para o coração do bairro chinês e, por ruas tortuosas, vinha dar-se ao Largo do Senado, onde o edifício da Câmara mais e melhor nos fazia lembrar que tínhamos deixado a China e regressado a Portugal.
Só faltava o pelourinho!”…”

continua

Balichão – tempero para guisados ou acepipes; molho composto de camarões pequenos, esmagados com sal, pimenta, malagueta, aguardente e aromatização com folha de louro (2)
Cúlis do inglês coolie – Cule- trabalhador chinês: carregador (carregava aos ombros  os palanquins, liteiras)  estivador, puxador de carroças e riquexó, condutor de triciclo, etc (2) Ver:
https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/cules/
Loucanes – assim denominados os “marujos chineses”.
Riquexó, “rickshaw” ou jerinchá – é o meio de transporte humano em que uma pessoa puxa por uma carroça de duas rodas. Ver:
https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/riquexos/
(1) REGO, Francisco de Carvalho e – Macau … há quarenta anos in «Macau». Imprensa Nacional, 1950, 112 p.
(2) (BATALHA, Graciete – Glossário do Dialecto Macaense, 1988 e Suplemento ao Glossário do dialecto Macaense, 1988.

Aquele que, deixando Hong Kong viesse a Macau pela primeira vez, gozava as delícias de uma curta viagem de quatro horas, rodeado do maior conforto e desfrutando uma paisagem admirável por entre ilhas e ilhotas cobertas de vegetação e semeadas a capricho, como se tal disposição obedecesse à finalidade de proporcionar o imprevisto.
Para trás ficava a imponente colónia inglesa, cheia de grandeza e majestade, lançada pela íngreme vertente, que parecia dirigir-se ao Céu… (…).
E quanto mais o pequeno e confortável navio se aproximasse de Macau, tanto mais mudava a feição de tudo, desde a brisa, que se tornava suave e branda, à cor das águas, que reflectiam na superfície o amarelado dos fundos que as correntes cobriam de lodo.

A Baía e a Praia Grande (final da década de 40, século XX)

Passadas as Nove Ilhas, semelhantes a nove irmãs imorredouras, que a lenda não deixa esquecer, avistava-se à distância a “Porta do Cerco”, a praia da “Areia Preta”, a “Chácara do Leitão”, mostrando-se no cimo da “Montanha da Guia” o célebre farol, o mais antigo da Costa da China.
Na outra elevação próxima, distinguia-se o “Hospital Conde de São Januário” , que dominava o grande casarão que outrora fora Convento de S. Francisco e que servia de Quartel de Infantaria.
É, então, à recortada costa de pequenas enseadas, seguia-se a “Baía da Praia Grande”, em curva caprichosamente feita, deixando antever as delícias de uma pequena cidade de paz e sossego…(…)
O casario caiado a cores garridas, as Igrejas, as Capelas, os Fortes, Fortins e Bastiões, as casas solarengas e a quietude dolente e embaladora, não deixavam dúvidas de que a China deveria estar longe desta terra, que tudo indicava ser portuguesa.
Ao dobrar a “Fortaleza do Bom Parto”, talhada no regaço do imponente “Hotel Bela Vista”, surgia o sinuoso caminho, que levava ao ”Tanque do Mainato”, com a colina despida de casario, à excepção da velha e abandonada vivenda de “Santa Sancha”.
Em cima, a velha Ermida da Penha, cheia de unção religiosa e graça na sua simplicidade.
Na última curva da ordenada beira-mar, via-se a “Fortaleza da Barra” e, mais adiante, em plano superior, a “Capitania dos Portos”, em estilo mourisco…
continua.
REGO, Francisco de Carvalho e – Macau … há quarenta anos in «Macau». Imprensa Nacional, 1950, 112 p.
Deste autor, anteriores referências em
https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/francisco-de-carvalho-e-rego/ 

Cartas da China I

Cartas da China IILivro de Francisco de Carvalho e Rêgo, publicado em Macau, no ano de 1949 e impresso na Imprensa Nacional. (1)

Cartas da China IIITraz na 1.ª página, um ex-libris : Francisco Penajoia.
Francisco Penajóia é o pseudónimo que o autor utilizou em alguns artigos na imprensa, como por exemplo, sobre “Camilo Pessanha”  (2)

Ao estilo de correspondência, são 18 cartas escritas por Francisco de Carvalho e Rêgo  e endereçadas À Exma. Senhora Dona Isabel Gorjão de Almeida, a quem o autor dedica o livro.

Cartas da China IV

São cartas onde o autor pretende ir contando  o muito que tenho de dizer-lhe, muito que será recolhido do que tenho lido, do que me têm contado e do que tenho observado”  (p. 13), nessa cidade (Macau), onde estava há cerca de quarenta anos.
Na 1.ª carta, anota interessantes opiniões sobre Camilo Pessanha e Manuel Mendes:
Quem há em Portugal, por exemplo, como ilustre sinólogo, como profundo conhecedor dos mais recônditos meandros da China?
Ora Camilo Pessanha conhecia mal a língua chinesa, quer escrita quer falada, sendo rudimentaríssimos os seus conhecimentos de tudo quanto é chinês.
Que deixou Camilo Pessanha escrito a China?
Nada, ou quase nada.
Com o auxílio de um intérprete-sinólogo que, por sua vez, trabalhava auxiliado por um chinês, mestre na língua de Confúncio, ouviu a narração de algumas elegias e deixou as traduções temperadas por uns restos da sua veia poética, já gasta e descolorida.
Mas, é assim, de resto, que trabalha a grande maioria dos sinólogos, que não consegue jamais visível independência num idioma, que parece  impenetrável… (…)”
“…Eu conheci em Macau, muito de perto, Camilo Pessanha e Manuel da Silva Mendes, dois estudiosos, que se interessaram por coisas da China.
O primeiro foi um sonhador, um fantasista, que paradoxalmente viveu a China em todo o seu materialismo, valor que se perdeu em conversas, aliás interessantíssimas, nada, ou quase nada, deixando à posteridade.
O segundo, mais profundo em conhecimentos que o primeiro, escondia uma alma de artista num corpo estruturalmente plebeu, temperando a sua prosa, sempre correcta, com humerismo, que chega a tocar as raias da irreverência.
Trabalhei com ambos e a ambos dei a minha modesta colaboração, sendo ainda hoje admirador de segundo qa quem presto aqui sentida homenagem à sua memória, lembrando com saudade e reconhecimento, as salutares lições que dele recebi.
Deixou uma obra pequena, obra que poderia ter sido maior, se falsos amigos, vencidos pela inveja, não tivessem faltado às suas promessas.
Para estes vai o meu maior desprezo… (…)

NOTA: Francisco Ernesto Palmeira de Carvalho e Rêgo, era o 5.º filho do Dr. José Maria Ernesto de Carvalho e Rêgo (1860-1917- bacharel em Direito em 1882, veio para Macau em 1908, como magistrado. Depois, delegado do Procurador da Coroa e Fazenda, Procurador Administrativo dos Negócios Sínicos, e após aposentação, advogado) e de Joana Alexandrina Palmeira de Carvalho e Rêgo (1860-1934).
Francisco veio para Macau com 10 anos de idade, em 1908, com os pais e irmãos (o irmão mais velho: José de Conceição Ernesto Palmeira de Carvalho e Rêgo, autor do livro “Figuras d´Outros Tempos”) (3).

(1) RÊGO, Francisco de Carvalho e – Cartas da China. Macau, 1949.
(2) PENAJÓIA, Francisco – Camilo Pessanha in Homenagem a Camilo Pessanha / org., pref. e notas de Daniel Pires. Lisboa, Instituto Português do Oriente; Macau, Instituto Cultural, 1990. – p. 40-44.
(3) RÊGO, José de Carvalho e – Figuras d´Outros Tempos. Instituto Cultural de Macau, 1994, 408 p., ISBN-972-35-0144-9.

Obras de Francisco de Carvalho e Rêgo:
O caso do tesouro do templo de A-Ma. Macau, Imprensa Nacional, 1949, 87 p. (Novela)
Da virtude da mulher. Macau, Imprensa Nacional, 1949, 219 p. (Ensaio)
Momentos musicais. Macau, Imprensa Nacional de Macau, 1949, 121 p. (Artes/Música). Sobre este livro, consultar o artigo de António Alexandre Bispo em:
http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM03-02.htm
Macau. Macau, Imprensa Nacional, 1950, 13 p. c/ fotos  (História)
Lendas e contos da velha China. Macau, Imprensa Nacional, 1950, 120 p. (Uso e Costumes /China)
Mui Fá: versos chineses. Macau Imprensa Nacional, 1951, 175 p. (Poesia)

Certo chinês abastado construiu numa avenida da cidade um prédio para sua residência, obedecendo, a construção, ao determinado pelos espíritos do bom agouro.
Receosos de que alguém pudesse construir nos terrenos que enfrentassem a sua moradia, de modo a impedir que os ventos propícios soprassem em sua casa, colocou na fachada do edifício, uma curiosa águia de pedra em atitude de levantar voo, pronta a atacar os espíritos maus, que pudessem vir de qualquer construção que ficasse no ângulo, que não deveria ser ocupado.
Um outro chinês, tempos depois, lembrou-se de construir um prédio, para sua habitação, precisamente no sítio para onde estava virada a águia defensora.
Como, porém, a atitude da águia pudesse pôr em risco a felicidade do seu lar, que fez o prudente chinês?
Mandou colocar, na fachada do prédio que construiu, um caçador em pedra, com a  espingarda apontada à águia, defendendo assim a sua casa dos ataques possíveis da águia agresssora.

(1) RÊGO, Francisco de Carvalho e – Cartas da China. Macau, 1949.

Macau Cidade do Nome de Deus na China CAPA

As primeiras páginas do livro (pp. 11-22), (1) o autor, Eduardo Brazão (2), na introdução, dedica o livro a “A Sua Excelência  Reverendísssima o Senhor D. João de Deus Ramalho S.J” (3) que foi seu companheiro de viagem, em 1954, de Lisboa às Filipinas num quadrimotor americano da Pan American, com escalas na  Ilha de Santa Maria, Gandara (Terra Nova), Nova York (três dias), Chicago, Montanhas Rochosas, S. Francisco, Honolulu, , Midway, Guam e Manila. Eduardo Brazão não quis seguir o conselho do Bispo para continuarem a viagem para Hong Kong num velho avião chinês, em que “a fuselagem sem bancos em que os passageiros se acocoravam em redor, colocando ao centro a bagagem” (pp.19-20). Ficou por Manila três dias e partiu para Hong Kong num “barco de carga como o nome indiano – chamava-se Benarés”  (p. 20)

Macau Cidade do Nome de Deus na China 1.ª Página

O livro tem como “Índice Geral”:
Apontamentos para uma monografia de Macau
I – Macau nos seus inícios
II – Macau e o nascimento de Hong Kong
III – Macau até ao tratado de 1887.
Como “Apêndice”: apontamentos geográficos sobre Macau, alguns elementos para a iconografia de Macau. No final do livro traz um resumo do “Apêndice” em francês e em inglês.

Entre as pp. 90-91 encontra-se uma gravura, desenho de George Chinnery (4)

Macau Cidade do Nome de Deus na China CHINNERY Rua de MacauUMA RUA DE MACAU – GEORGE CHINNERY

Neste livro estão também reproduzidas vinte e oito gravuras de Macau, Cantão, Whampoa e Juncos chineses, da colecção Duarte de Sousa (5)
Há uma “Nota Final” no livro (p. 199) onde o autor agradece às pessoas que o auxiliaram na realização do trabalho. Entre eles o Sr. Francisco de Carvalho e Rego, erudito da História de Macau, sobre o qual publicou já alguns interessantes volumes, e que me ajudou na identificação de certos locais da Cidade do Nome de Deus apresentados nas gravuras que acompanham este trabalho.
(1) BRAZÃO, Eduardo – Macau: cidade do nome de Deus na China, não há outra mais leal.  Agência Geral do Ultramar, Divisão de Publicações e Biblioteca, 1957, 267 p. 23,5 cm x 16,5 cm (Colecção Monografias dos Territórios do Ultramar)
(2) Eduardo Brazão (1907 – 1987), diplomata e académico da Academia Portuguesa da História. Foi cônsul em Hong Kong durante cinco anos (1945-1950), no rescaldo da guerra.
Pode-se ver a sua extensa biografia (principalmente o trabalho meritório que realizou em Hong Kong) e bibliografia produzida, num artigo de Ana de Lael Faria em:
http://idi.mne.pt/images/docs/eduardo_brazao.pdf
(3) D. João de Deus Ramalho (1890-1958), Bispo de Macau de 1942 – 1954. Foi nomeado Bispo de Macau a 26-09-1942, sendo sagrado em Shui-Heng a 06-11-1942, dia em que tomou posse da diocese por procuração. Chegou a Macau a 23-12-1943. Resignou em 1954.
Refere Eduardo Brazão que enquanto esteve em Hong Kong, sempre que visitava Macau, “ não faltava nunca uma longa conversa com o Bispo no seu Paço”. (p. 21)
(4) Este desenho era da colecção do autor.
(5) António Alberto Marinho Duarte de Sousa (1896-1950) tinha uma livraria cujo espólio foi adquirido pelo Estado Português em 1951 e depositada, como património nacional, na Biblioteca do Palácio Foz (actualmente inactiva). A colecção foi posteriormente transferida  para a Biblioteca Nacional.  http://www.gmcs.pt/palaciofoz/pt/biblioteca)

“Na Avenida Almeida Ribeiro, artéria principal desta cidade, no quarteirão que começa ao fim da Rua Central, construiu, um chinês rico, uma vivenda de rés-do-chão e três andares, onde vivia com toda a sua família, isto é, mulheres, filhos, genros, noras, etc.
Resolveu o governo da Colónia construir, do outro lado da Avenida e mesmo em frente da vivenda do chinês, o edifício dos Correios e Telégrafos, de rés-do-chão e dois andares, o que fez com que deixassem de soprar, como até aí sopravam, os ventos propícios, que tinham sido considerados aquando da construção da casa do chinês.
Além disso, o referido edifício dos Correios e Telégrafos passou a ensombrar, de modo não recomendável, a vivenda, que tinha sido construída, segundo todos os preceitos de bom augúrio.
Demolir a vivenda não era prática aconselhável, assim como demolir o edifício dos Correios e Telégrafos não seria de modo algum impraticável.
Que fez então o chinês?
Consultou o adivinho e o problema foi resolvido do seguinte modo:
Na fachada da vivenda foi colocado um espelho côncavo, que reflecte todo o edifício dos Correios e Telégrafos invertido e em proporções minúsculas.
Deste modo, o edifício dos Correios e Telégrafos foi reduzido a proporções mínimas, insignificantes e deixou de dar má sombra e de impedir que soprassem, como convém, os ventos propícios.” (1)

(1) RÊGO, Francisco de Carvalho e – Cartas da China. Macau, 1949.