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Conta-se sobre um pescador que, farto de andar pelos mares, certo dia, resolveu ficar em terra e deitar-se em cima de uma rocha onde acabou por adormecer. Era noite quando acordou e, ao olhar em seu redor, nada conseguiu ver no meio da espessa escuridão.
De repente, ouviu vozes estranhas, vindas do lado do mar, que o atemorizaram, pois julgou tratar-se de almas do outro mundo. Foi então que percebeu que as vozes retratavam uma “discussão” entre a água do rio e uma rocha coberta de ostras, para ver qual delas era mais resistente.
Tudo indica que ambas terão resistido, pois nas águas de Macau continua a haver grande quantidade de ostras….” (1)
O vocábulo «manduco» é designada a râ de Macau.
A Monografia de Macau (Ou-Mun Kei-Leok, 1950, p. 39), diz que: “em Macau havia três rochas estranhas: a Ieong-Sun-Seak, (Rocha de Barco Oceânico) no Pagode da Barra, (é sobre a superfície desta rocha que se encontra presentemente em frente do pagode da barra gravaram o desenho de um barco e quatro caracteres.

MACAU B. I. T. XII-9-10 Nov-Dez 1977 CAPA Templo da BarraTemplo de Á Má ou da Barra / Foto de 1977

a outra era a Hói-K´ók-Seak, (Rocha da Percepção do Mar) no Promontório de Neong-Má (Neong Má Kók) no mesmo Templo da Barra  e uma outra a Há-Má-Seak (Rocha da Rã)  « é arredondada e de cor verde-macia. Sempre que venta e chove e, pela tarde, quando a maré principia a subir, ouve-se produzir nela o som Kók-Kok».
A Rocha de Rã ficava na Praia do Manduco. Quando houve a necessidade de a destruir para a abertura de novos arruamentos, levantaram-se protestos da parte dos chineses. (2).
Era nesta Praia de Manduco onde,  após a fixação dos portugueses,  se realizavam as trocas comerciais  e onde atracavam no cais da praia, os barcos de pesca (quando a indústria da pesca era próspera no território). Vários comerciantes de Macau tinham nela cais privativo (3). Fica para recordação presente,  a Rua da Praia de Manduco uma das mais antigas ruas de Macau.  Começa na Rua de João Lecaros, ao fundo da Calçada do Januário e termina na Rua do Almirante Sérgio, ao lado do prédio n.º 255-F.
 
(1) BARROS, Leonel – Tradições Populares, Macau, Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), 2004.
(2) Já em 9 de Abril de 1829, «o Mandarim de Hian-Chan por appelido Liu faz saber ao sr. procurador de  Macau que recebeu, um offício do vice-rei de Cantão, em que, attendendo sua ex.ª às representações de Sung-Ku-Chi e outros contra o portugez Bemvindo o qual se apossou  de um baldio marginal sito na praia onde está a pedra chamada Manduco  fazendo um aterro, e destruindo um pagode, que ali existia… (…)… attendendo a que a mencionada pedra do Manduco, sendo memorável na história de Cantão, não devia ser assim coberta de entulho, o que constitue desobediência às leis; ordena a ele mandarim que mande affixar editaes e officie ao sr. procurador e ao sr. ouvidor, para que obriguem o Bemvindo a demolir immediatamente o caes já fabricado e a restituir o terreno ao seu estaddo primitivo…»
PEREIRA, A. F. Marques – Efemérides Comemorativas da História de Macau in TEIXEIRA, P. Manuel – Toponímia de Macau, Volume I, 1997.
(3) Dezembro de 1797 «dis Manuelde Oliveira Reys cazado, e morador nesta Cidade, que elle Sup. e comprara em publico Çeilão duas moradas de cazas citas na praya de Manduco, q. forão do Def.to Ant.º Ribro, as quais tem seus caes, e perto delle ao mar hua Caldr.ª, mas sem muros, e como o Sup.e quer  fabricar as d.as cazas puxando-as m.s (mais) fora p.ª endireitar a rua, formar hua Caldr.ª na porta do Caes e mover p.ª fazer lugar p. guardar os pertences do seo Navio: e como não pode fazer sem liçenca», pede-o ao Senado. O Senado despachou favoravelmente o requerimento em 30 de Dezembro de 1797.
TEIXEIRA, P. Manuel – Toponímia de Macau, Volume I, 1997
11-11-1829 – Nesta mesma data, este mesmo mandarim proibiu, por edital, as lorchas chinesas de aceitarem, na Praia do Manduco, (praia da ) Feitoria e outros lugares, mercadorias estrangeiras, para as transportarem, clandestinamente, para Franquia, Nove Ilhas, Leng-Teng e outros lugares (GOMES, LG – Efemérides da História de Macau, 1954)

“Junto à embocadura do rio, existia uma povoação de pescadores que trocava o peixe, recolhido no alto mar, por arroz e legumes cultivados por agricultores que viviam para além dos muros da cidade, no local hoje conhecido por Bairro de Mong-Há.
Um dia, quando os pescadores andavam na faina, foi visto um grande cardume de peixe, nadando e saltitando em alta velocidade, em direcção às nove ilhas. Desde logo, os pescadores concluíram que qualquer coisa de anormal provocara aquele súbito movimento colectivo.
Minutos mais tarde, o céu cobriu-se de nuvens escuras e um forte vendaval veio colocar em perigo a maioria dos juncos de pesca, devido às gigantescas ondas que se formavam . Numa luta desesperada contra as forças da natureza, os pescadores tentaram chegar à Ponta da Cabrita, na ilha da Taipa, mas algumas embarcações foram de encontro aos enormes calhaus que havia naquelas bandas.

Pormenor Macau Taipa Ponta Cabrita 1934Pormenor de um Mapa de 1934 onde se assinala a localização da Ponta Cabrita
(arrasada para construção do aeroporto de Macau)

Quando o vendaval começou a abrandar, por entre as negras nuvens que cobriam o firmamento, os pescadores depararam-se coma  presença de um vulto sobre o mar, semelhante à imagem de uma mulher, que, de braços abertos e girando em tornos dos quatro pontos cardinais , parecia ordenar fim ao temporal.
De facto, assim aconteceu: de repente, o Sol tornou a brilhar sobre o azul do firmamento, como se nada tivesse acontecido, deixando os homens do mar boquiabertos.
De regresso a Macau, os pescadores ancoraram na Praia do Manduco e imediatamente foram agradecer à deusa A-Má, a quem atribuíram ele bondoso milagre que lhes poupara a vida, acendendo pivetes e oferecendo bons acepipes, como manda a tradição.

Pormenor Mapa Macau Siac 1929Pormenor de um Mapa da Colónia de Macau, de 1929
Sinalizada a zona de Macau Siac, já com os aterros efectuados.

Nessa mesma tarde, os pescadores reuniram-se numa residência, a fim de trocarem impressões sobre o acontecimento, tendo a maioria concluído que tinham tido a mesma visão.
A partir de então, resolveram destinar parte do lucro da venda do pescado para a construção de um novo templo (Macau-Siac) que foi, entretanto, erguido no topo de um pequeno outeiro existente nas proximidades do reservatório de água.
BARROS, Leonel – Tradições Populares, Macau. Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), 2004.
Sobre o Templo de Ma Kau Seak /Macau-Siac, e a Ponta de Cabrita, ver:
https://nenotavaiconta.wordpress.com/2013/07/15/o-pagode-de-macau-seac-jaime-do-inso-1929/
https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/ponta-cabrita/

O calendário chinês é extremamente variado nas festividades que o integram. Neste dia 20 de Agosto do presente ano, precisamente no dia 7 da sétima lua, celebra-se a Festividade das Sete Irmãs. A lenda que envolve este poético evento religioso já quase não se celebra em festa entre a população de Macau que tinha como curiosidade a participação somente das mulheres principalmente as donzelas.

MACAU B. I. T. X-5 e 6, JUL-AGO1974 Festival 3 Irmãs IVOferendas no altar no dia das Sete Irmãs

Extraímos esta encantadora narração da obra de Luís Gonzaga Gomes, “Festividades Chinesas”:
Em tempos cuja memória já não existe na lembrança dos homens, viveram neste mundo sete irmãs que, com os seus dotes de formosura e incomparáveis virtudes impressionaram vivamente Iok-Uóng (Imperador Jade). Este, entendendo que a corte celestial não deveria prescindir da presença de tão belas e donairosas damas, resolveu vir buscá-las à terra.
Foi assim, que o firmamento passou a ser povoado, desde então, com mais uma constelação por nós outros conhecida pelo nome de Plêiades.

MACAU B. I. T. X-5 e 6, JUL-AGO1974 Festival 3 Irmãs IA divindade que se venera no dia das Sete Irmãs

Na dinastia Hón, a mais prendada destas seta irmãs, isto é, a Tchek-Nui ( a Tecedeira) condoída com a triste sorte de Tong-Ueng, um pobre mortal que, não tendo dinheiro para fazer o enterro do seu pai, se vira obrigado a vender-se a si mesmo, voltou à terra para com a ajuda do seu trabalho, o auxiliar a angariar os meios suficientes para alcançar a sua manumissão. Dessa união entre o mortal e uma deusa nasceu o prodigioso Sou-Tch´un, que veio ser um dos mais distintos letrados do Império do Meio.
Os chineses, profundamente impressionados com a grande dedicação filial do Tong-Ueng, passaram a perpetuar o seu nome nos « Vinte e Quatro Exemplos da Piedade Filial», e a sua união com a tecedeira forma o entrecho principal de dois entremezes Sin-Kai Song-Tchi ( A fada Presenteia-o Com Um Filho) e Lok-Kuok T´ai-Fong-Seong (Os Soberanos dos Seis Estados Promovem-no a Dignitário) com que de preceito se iniciam todas as representações teatrais da gala.”

MACAU B. I. T. X-5 e 6, JUL-AGO1974 Festival 3 Irmãs IIOs pivetes do culto e a verdura do arroz, dispostos no altar doméstico

Esae lenda que foi originalmente importada do Japão sofreu com o tempo várias modificações pelo que há outras versões e tem servido de tema para várias composições teatrais e cinematográficas.

MACAU B. I. T. X-5 e 6, JUL-AGO1974 Festival 3 Irmãs IIIUm vaso de arroz que simboliza a felicidade

A Festividade das Sete Irmãs é exclusivamente celebrada pelas mulheres que uns dez dias antes, as donas de casa tratam de fazer germinar o arroz em recipientes especiais de louça ou de barro cujos renovos deverão estar suficientemente crescidos para serem oferecidos  aos espíritos do vaqueiro e da tecedeira, na data apropriada, conjuntamente, com pires de diversas tamanhos, contendo diferentes carnes, frutas, pevides e flores.
Informação e fotos, retirados dum artigo, não assinado, de “MACAU Boletim de Informação e Turismo de 1974

MEU ALBUM Rochedo TAI UT Barra 3AGO2005Os dois caracteres vermelhos “Tái Ut” – 太乙 (1) num dos rochedos do Templo da Barra.
Foto pessoal – 3 de Agosto de 2005

A lenda associada aos dois grandes caracteres vermelhos – Tái Ut – que se encontram numa rocha do Templo da Barra e que remonta ao tempo do estabelecimento dos portugueses em Macau, é -nos contada por Luís Gonzaga Gomes(2).
“Nesse tempo, lorchas carregadas de mercadorias e provenientes de todos os portos da China fundeavam no porto interior, junto ao templo de T’in Hau, a Soberana do Céu, protectora das gentes do mar, de quem eram extremamente devotos.
Curioso, porém, é que apesar desse fervor religioso, dir-se-ia que os navegantes se encontravam em desfavor da sua patrona, pois todos os anos, nas proximidades do dia 23 da 3ª lua, dia consagrado à festividade da T’in Háu, não deixava de se dar um estranho naufrágio, em frente do seu templo. Tal facto, atribuíam à ausência de T’in Háu, (3) que nessa ocasião visitava a sua terra natal, Tin-Pou, em Fuquiem.(4)
Houve um ano, porém, que aportaram todas as embarcações excepto uma, a de Mâk Kâm Tái, que, por andar atarefado, não conseguira chegar a tempo para as festividades de T’in Háu. Porém, para os lados das Nove Ilhas, formou-se uma nuvem negra que, absorvendo as águas do mar e formando uma coluna de água, envolveu a embarcação de Mâk Kâm Tái, desfez-la em mil pedaços que se esfrangalharam de encontro à superfície do mar. Apesar do desastre ter ocorrido em frente do templo, onde se encontravam centenas de embarcações, estas nada sofreram e ninguém se apercebeu da tragédia. Apenas dois tripulantes se salvaram, testemunhas de tão terrível tragédia. Como tal calamidade ocorria periodicamente e todos os anos, por essa data, destroços de naufrágios apareciam em frente ao templo, cresceu o culto dos marítimos à deusa.”

POSTAl 1986 Temploda Barra DSTPOSTAL – “Temple of the goddess A-Ma (the name of Macau derived from)” – 1986
Copyright Dept. of Tourism (D.S.T.) MACAU – 86-12
Impresso na Gráfica de Macau Lda.

……..Ora vivia nesse tempo um geomante aureolado de grande fama, pois estava mais que comprovada a infalibilidade das suas pronunciações. Não havia cidade, povoação ou aldeia na província de Kuóng-Tông (5) onde o nome desse  têi-lei-sing-sâng (geomante) não fosse referido com o maior respeito.
Chamava-se Lái-Pôu-I e aconteceu ter vindo nessa  época a Macau. Um dia resolveu ir visitar o Templo da Barra.  Achou o sítio encantador e quedou-se meditando, durante algum tempo, em frente dos admiráveis conceitos inscritos na áspera superfície de vários rochedos. Quando chegou diante duma enorme fraga, para comprazer os que o acompanhavam, pôs a estudar o local com a sua ló-p´ún (a bússola dos geomantes) junto de uma enorme rocha. Depois de apalpar o lóng mak (o pulso do dragão), segundo as regras da ciência de que era senhor. Ao cabo de algum tempo, voltou-se para os circunstantes e disse-lhes suspirando:
– Não há dúvida. É exactamente aqui neste sítio onde a virulência do ar nocivo é mais acentuada.
Contaram-lhe dos naufrágios, que todos os anos ocorriam mesmo em frente do templo. Disse, então, Lái Pou I, que era preciso contrapor, quanto antes, a influência do ar nocivo, pois «a corrente da Ribeira Grande, na fronteira ilha da Lapa, entra na porção do rio que fica em frente ao templo, escavando, no seu ímpeto, o leito, de forma a moldá-lo numa larga e profunda bacia semelhante a uma rede de pesca. Por sua vez, a Ribeira Grande age como um pescador, que ao lançar a sua rede colhe, todos os anos, uma embarcação». Foram estas as palavras do famoso geomante. Os marítimos, por sua vez, trataram de angariar uma larga soma para pagar a Lái Pou I por forma a que este acabasse de vez com tal nefasta influência.
Templo da Barra Rochedo TAI UT

Lái Pou I traçou na rocha os dois grandes caracteres vermelhos – Tái Ut – que significam causa primordial, a frase tauista que impede qualquer tipo de desgraça. Depois, debaixo da rocha, enterrou uma espada com o gume voltado para a Ribeira Grande, para cortar as cordas da nefasta rede. «Desta forma, o pescador, criado pela fértil imaginação do geomante, ficou inibido de puxar a sua malfazeja rede e, por tal facto, daí em diante, nunca mais se registou a ocorrência de naufrágios misteriosos em frente do templo da Barra».”

POSTAL FAmoso Rochedo Templo da Barra Sem dataPOSTAL  – Templo de A-Ma – Famoso Rochedo/A view of the A-Ma Temple – Famous Rock/媽閣廟 名巖 (6)   – S/ data,  provável da década de 90
Direcção dos Serviços de Turismo de Macau
Lito:  Imprensa Nacional de Macau

(1) 太乙- mandarim pinyin: tài yǐ;  cantonense jyutping: taai3 jyut3.
(2) GOMES, Luís Gonzaga – A Rocha de “Tái Ut” do Templo da Barra, in Macau Factos e Lendas, ICM, 1994.
(3) 天后mandarim pinyin: tiān hòu; cantonense jyutping: tin1 hau6. Deusa do mar/imperatriz do céu, também conhecida por Mazu –  媽祖; Local de nascimento  Meizhou (湄州) em  Putian (莆田縣), Província de Fujian.
(4) 福建 -Fujian, Fukien, Fuquiém ou Hokkien.
(5) 廣東 – Guangdong, Kuangtung ou província de Cantão.
(6) 名巖  – mandarim pinyin: ming yán; cantonense jyutping: meng 4 ngaam4.

“Contam que, outrora, existiu no parque desse templo, um poço cuja água era duma frescura e doçura sobrenaturais.
Esse poço, que posteriormente foi entulhada, teve a sua origem numa poética lenda:
Àquele templo recolhera o velho T´ám-Uân, para se dedicar à vida ascética. O ancião consagrava todo o seu tempo à leitura de sutras e à meditação dos filósofos e doutores do budismo, sendo a sua única e suprema aspiração o poder um dia subir ao nirvana por eutanásia.
Nesse tempo, os habitantes da aldeia cercania de «Lông – T´in», sofriam duramente com a falta de água potável. Condoído com a triste sorte dos aldeões, o asceta resolveu empregar toda a sua ciência para que eles pudessem dispor do indispensável líquido.
No silêncio do templo, submeteu-se durante semanas consecutivas, a um estado analógico, aniquilando com severo esforço todas as suas vontades, não comendo, não bebendo e não falando.
Uma noite, ouviu-se um horripilante estrondo no recinto. No parque, abrira-se, milagrosamente, uma funda cova, e nela, surgira uma nascente de água pura e cristalina. O líquido era, por natureza, dulcíssimo.
Próximo do poço, via-se uma faixa de pano encarnado – ó único vestígio deixado, neste mundo, pelo velho T´ám-Uâu, que os aldeões, gratos e reconhecidos, guardaram como preciosa relíquia, pois que o virtuoso ancião se sacrificara para que a água lhes não faltasse.
O poço trouxe a alegria e a paz aos camponeses daquela aldeia, que, todos os anos, passaram a comemorar o milagre de T´am-Uân, no aniversário do seu desaparecimento, dedicando-lhe pivetes, incenso, velas votivas e outros objectos de culto.
E reza a tradição que, até que foi entulhada, esse poço jamais seco, mesmo nos períodos de maior estiagem.”

MACAU Boletim Informativo, 1955

“Foi também devido à insipiente crença do fông-sôi (1) que, por largo tempo, se não atreveram os chineses a residir no sítio que é hoje a Avenida República, preferindo os próprios pescadores construir as suas barracas na Barra, pois diziam que a prosperidade do mencionado local estava ameaçada por um suposto bico de galinha (kâi-tchôi) (2) constituído pela extremidade da pequena ponta de terra da fronteira ilha da Taipa que, por ser algo prolongada e apresentar uma protuberância no seu rugosos relevo, faz lembrar o colo distendido dum galináceo de ingurgitada inglúvia, (3) sendo, por isso, conhecida entre os chineses pelo nome de Kâi-Kéang (Pescoço de Galinha) (4).

Sob o Olhar de A-MÁ - Av Repblica c. 1950Vista panorâmica da Avenida da República c. 1950

 Se tal bico de galinha estivesse revirado para outra banda, bem estava. Infelizmente, não era isso o que acontecia. O obnóxio (5) bico estava ominosamente assestado em direcção da Avenida da República, ameaçando reduzir até à extrema inópsia (6) o indivíduo que ousasse residir em tal sítio, pois quaisquer riquezas que este possuísse seriam, inexoravelmente debicadas, aos poucos.

macaostreets - Av. República c. 1935Vista panorâmica da Avenida da República c. 1935 (7)

 Então, para eliminar a sua nocividade, colocaram, no sopé da colina da Penha e mesmo em frente da Ponta Cabrita (Taipa) uma estatueta em pedra da Móng-Hói Kun-Iâm (Deusa da Misericórdia que mira o mar) (8) na esperança de impedir, com o seu manto, quaisquer malignas influências daquele nefasto bico de galinha. Porém, como a Kun-Iâm não tinha suficientes poderes para tornar inóxio o amaldiçoado bico, descobriram, então que a parte da colina que fica voltada para a Taipa se parecia com a cabeça de leão e, com o fim de lhe darem vida, para esta fera devorar, com a sua bocarra, todos os fluxos obnóxidos emitidos pelo bico da alinha, instalaram duas brilhantes luzes em duas covas da vertente que correspondiam, mais ou menos, às suas órbitas.
Dizem que foi, desde então, que o sítio da Avenida da Republica se tornou habitável.” (9)

(1) Geomancia chinesa 風水mandarim pinyin: fēng, shuǐ ; cantonense jyutping:  fung1 seoi2
(2) 雞嘴mandarim pinyin: jī zui; cantonense jyutping:  gai1 zeoi2
(3) inglúvio – papo ou primeiro estômago das aves.
(4) mandarim pinyin:  jī  gěng; cantonense jyutping:  gai1 geng2
(5) obnóxio – perigoso, nefasto, desprezível, funesto
(6) inópsia – penúria, miséria
(7)  https://macaostreets.iacm.gov.mo/p/parishoface2/photoalbum.aspx?album=%E6%B0%91%E5%9C%8B%E5%A4%A7%E9%A6%AC%E8%B7%AF
(8) 望海觀音mandarim pinyin: wàng hǎi guān yīn; cantonense jyutping:  mong6 hoi2 gun1 jam1
(9) GOMES, Luís Gonzaga – Macau Factos e Lendas. Edição da Quinzena de Macau, 1979, p. 152.

Continuação da lenda da rocha dos cinco metais:  (1)

“Para que a população da cidade pudesse admirar tal maravilha foi a rocha transportada para a praça do Leal Senado onde ficou exposta durante largo tempo.
Um dia, porém, a rocha apresentou-se bexigada de crivos.
É que tão precioso tesouro não podia deixar de tentar a cobiça dos maltrapilhos que, aproveitando-se da escuridão da noite, resolveram extrair com martelo e escopro a quantidade que puderam dos metais que afloravam à superfície de tão preciosa rocha.
Foi, então, ordenado o alisamento da rocha de forma a restituir mais ou menos a sua aparência primitiva e repuseram-na no jardim da Gruta de Camões onde, segundo dizem, ainda aí se encontra.
Porém, o que mais assombrou toda a gente é que daí a uma não, no sítio onde foi encontrada a maravilhosa rocha, principiou a brotar uma planta com um viço extraordinário, a qual, ao princípio não pôde ser identificada, pois ninguém era capaz de dizer ao certo a que família botânica ela pertencia.
Essa planta, com o tempo, foi-se desenvolvendo, transformando-se em árvore e, quando principiou a dar frutos, verificou-se que ela era uma jaqueira, exactamente a maior de todas as árvores desta espécie que se encontra no jardim, produzindo em média umas dez jacas (2) anualmente e dum aroma e sabor sem rivais. (3)

(1) https://nenotavaiconta.wordpress.com/2014/09/18/leitura-lenda-da-rocha-dos-cinco-metais-i/
(2) “Jaca – fruto da jaqueira. «Jaca é a mais volumosa fruta da Índia e talvez do mundo, mas por ser demasiado doce e de cheiro muito forte não arada ao paladar europeu» . Esta fruta é importada em Macau, na estação quente. A casca é rossa e escamosa. Partida esta casca com uma pancada, tem uma polpa de aroma violento e enjoativo, que no entanto é bastante apreciada, e na qual estão incrustadas as sementes, espécie de castanhas amarelas, envoltas numa película escura. Retirada esta película, as “castanhas” são também comestíveis. Segundo Luís G. Gomes, «Chinesises» (p. 100), conhece-se em Macau a jaca bárica, de polpa consistente e a jaca pulu, de polpa mole e glutinosa.”
BATALHA, Graciete Nogueira – Glossário do Dialecto Macaense. Coimbra, 1977, 338 p.
(3) GOMES, Luís Gonzaga – Curiosidades de Macau Antiga. Instituto Cultural de Macau, 2.ª edição, 1996, 184 p., ISBN -972-35-0220-8.

Ainda a propósito da descrição do Jardim de Camões, feita por Luís G. Gomes (1), retiro esta lenda:
Ora, há já um ror de anos, quando se resolveu alargar e aformosear o jardim, os operários que aí trabalhavam tiveram de construir naquele recinto uma barraca para a sua própria habitação.
Houve uma noite, em que o capataz Lâm – atormentado pelo atabafante calor que, então, se fazia, não conseguira pregar olho, por mais que resolvesse na sua dura prancha de madeira que lhe servia de cama. Resolveu, então, sair para o jardim, aproveitando-se da ocasião para fazer a sua ronda nocturna.
Mal dera, porém, uns poucos de passos deparou, não muito distantes do lugar onde se encontrava, um estranho brilho que surgia da terra. Alvoroçou-se aio princípio julgando que aquele fulgor fosse o espírito de alguma alma penada que lhe viesse pedir contas da violação de várias sepulturas a que fora obrigado em virtude da construção de vários arruamentos.
OP estranho fulgor não bulia, no entanto, do sítio onde dimanava. Lâm recobrou, então, ânimo e encaminhou-se em direcção daquilo que agora julgava não ser mais do que um vulgar fogo-fátuo.

Jardim de Camões

Qual não foi o seu espanto quando notou que o clarão não só não se afastava com a sua aproximação mas aumentava, cada vez mais, de intensidade. Lembrou-se, então, de ter ouvido dizer que nos sítios donde irradiam raios de luz se ocultam valiosos talismãs.
Com esta lembrança voltou sossegado para a barraca e passou o resto da noite a excogitar sobre o caso sem acordar nenhum operário para lhe revelar a sua descoberta.
Logo aos primeiros alvores da manhã regressou ao local que na noite prévia marcara com uns calhaus e ordenou aos operários que escavassem o terreno todo aí em volta. Fartaram-se os homens de suar para tirar terra e mais terra sem nada encontrar e, quando principiaram a desconfiar da regularidade da cabeça do seu capataz, a enxada de um deles bateu num objecto que oferecia bastante resistência.
Apressaram-se, então, a revolver a terra, acabando por extrair um grande bloco de pedra que, limpo do barro húmido que a ele apegado começou a fagulhar fulgurantes centelhas de várias tonalidades.
O capataz mandou, então, chamar urgentemente o chefe das obras do jardim para examinar o estranho achado e as pessoas entendidas que foram também convocadas para dar a sua opinião acordaram todos em que, para os chineses, são o ouro, a prata, o ferro, o cobre e o chumbo. E, por este motivo, o rochedo ficou sendo conhecido pelo nome de “Ung-Kâm-Sèak” (五金石) (2), isto é, a “Rocha dos Cinco Metais”.
……………………………………………………………………………………
(continua) (3)

(1) https://nenotavaiconta.wordpress.com/2013/10/22/leitura-macau-e-a-gruta-de-camoes-xiv-o-jardim-i/
(2) 五金石 mandarim pinyin: wu jìn shí; cantonense jyutping: ng5 gam1 sek6.
(3) GOMES, Luís Gonzaga – Curiosidades de Macau Antiga. Instituto Cultural de Macau, 2.ª edição, 1996, 184 p., ISBN -972-35-0220-8

Outro desenho a lápis do álbum da colecção Duarte de Sousa, presente no livro “Macau, Cidade do Nome de Deus na China” (1).

Macau Cidade do Nome de Deus na China A Ma TempleA God House; Back Harbour. Macao.”

Templo de A-Má, no Porto Interior

THE AMACAO TEMPLE  (descrição de J. Dyer Ball, em 1905)
The temple near the inner harbour is remarkable for its situation. A mass of gigantic boulders are heaped together by Nature in chaotic confusion and at their feet are the main buildings of the temple while stone steps lead up amongst the masses of the rock, amidst which here and there, are perched different buildings and shrines. Inscriptions are cut in the rocks, and stone seats are placed on the little terraces, which occupy every coin of advantage, grudgingly granted by the great granite boulders. 
In the main building of the temple is a very good model of a Chinese junk with wooden anchors, complete. The goddess came from Foochow to Macao in the junk of which this is a model, after various oppositions made to her departure. One of the signs that she should go was the falling ill of all the sailors with colic. The sword of a large sword- fish is also preserved in this temple as a thank-offering presented by a fishing-junk for a fruitful season in fishing. This temple which is known as the Amacao Temple, or that of “he Lady of the Celestial Chambers”, had its beginning about A. D. 1573, when a Fukienese ship becoming unman- ageable at sea, all perished but one sailor, a devotee of the goddess, Matsopo, who embracing her sacred image with the determination to cling to it was rewarded by her powerful protection, according to his own belief, and preserved from perishing. The ship, driven through the storm, weathered it, and the devoted sailor landed at Macao and built on this spot a temple at the hillock of Amako, as being the best situation he could find for the only temple to his patron saint which his slender means would permit of his erecting. 
Fifty years after an Imperial Messenger in the course of a dream had the locality of a lake, containing many and valuable pearls revealed to him by the goddess, and in grateful acknowledgement of the great favour thus granted him, he built a temple on the spot to her. 
The origin of the present congeries of buildings was due to Kukienese and Tiuchiu merchants subscribing 7000 taels to build some more fitting shrines for the favourite object of their worship. The upper temple is dedicated to The Goddess of Mercy; the middle one is styled The Temple of Universal Benevolence; while the lower one is named Amako. (2)

(1) Álbum de Desenhos a Lápis Sobre Macau e Ilhas do Atlântico e Índico – 50 desenhos.
http://purl.pt/index/porCulture/aut/EN/933589_P6.html.
Ver anteriores “posts”
https://nenotavaiconta.wordpress.com/2014/02/21/pintura-de-macau-de-1831-1832
(2) Sobre este autor e referência ao livro, ver:
https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/j-dyer-ball/

            “O Deus do Fogão é designado em chinês por T´chou-Kuan. (1) É muito popular e respeitado pelos chineses, especialmente nos dias que antecedem o Ano Novo Lunar.
            Acreditam os chineses que esta divindade  tem grande poder sobre as vidas das pessoas que formam o agregado familiar. Tem também a sua festa que é celebrada no terceiro dia da oitava lua.
            O seu nicho está colocado geralmente num canto da cozinha por detrás de um fogão. É nesse nicho que se vê a imagem de um velho e duma velha, sua companheira, ambos sentados no seu trono. Os que não têm dinheiro para adquirir estas duas imagens limitam-se a colocar no referido nicho uma folha de papel vermelho onde estão pintados alguns caracteres chineses correspondentes ao nome de cada um.
            Deus de Fogão II

             A fim de cativarem a sua amizade, os membros de cada família oferecem-lhes deliciosos manjares e saborosos doces. Para isso, improvisam na sala um pequeno altar para as duas imagens.
            Todas as cerimónias da veneração ao Deus do Fogão só podem ser oficiadas por indivíduos do seco masculino.
            É curiosos notar que à chegada do Ano Novo corresponde o regresso do Deus do Fogão, «o espia que tudo vê» e que, sete dias antes, partira do seu nicho da cozinha, afim de junto do Soberano dos Céus – o Imperador Jade – relatar tudo o que observara em casa durante o ano inteiro.
            Deus de Fogão IE para evitar as coscuvilhices daquela curiosa divindade, a família cautelosa procura cativar as suas graças e obter dele indulgência na sua missão, oferecendo-lhe bolinhas, velas e pivetes e «batendo-lhe cabeça», chegando até  alguns, a oferecer-lhe mel para adocicar os seus lábios ou bebidas alcoólicas para lhe entorpecer a memória e lograr,  deste modo astucioso e pueril,  a omissão de algumas faltas  que pesam nas suas consciências e pelas quais receiam o devido castigo de Iôk Uóng – soberano hierárquico do Deus do Fogão.
            Assim, aquele agente de ligação entre deuses e mortais cuja ausência por escassos dias deixou uma sensação de alívio entre a supersticiosa família, chega novamente no dia do Ano Novo, sendo recebido com todas as pompas e saudado com o rebentar aparatoso das longas fitas de panchões ou simples cartuchinhos de pólvora, cerimoniosas prostações e oferta de acepipes, incenso e sândalo (2)
(1) 灶君 mandarim pinyin: zào jún; cantonense jyutping: zou3 gwan1  – monarca/senhor do fogão da cozinha
Também conhecido por:
灶神 mandarim pinyin: zào shén; cantonense jyutping: zou3 san1 – espírito do fogão da cozinha
ou
灶王  mandarim pinyin: zào wàng; cantonense jyutping: zou3 wong4 – rei do fogão da cozinha
(2) BARROS, Leonel – MACAU Coisas da Terra e do Céu. Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, Macau, 1999, 221 p., ISBN 972-8091-83-11.
Desenhos retirados de http://en.wikipedia.org/wiki/Kitchen_God