“O cronista António Bocarro escreve: «Os casados que tem esta cidade são oitocentos cinquenta Portugueses e seus filhos que são muito mais bem dispostos, e robustos, que nenhuns que haja neste Oriente, os quais todos tem uns por outros seis escravos de armas de que os mais e milhores são cafres e outras nações com que se considera que assim tem balões (1) que eles remam pequenos em que vão a recrear-se por aquelas Ilhas seus amos poderão também ter manchuas (2) maiores que lhe servirão para muitas coisas de sua conservação e serviço de Sua Magestade.
Além deste número de casados Portugueses, tem mais esta cidade outros tantos casados entre naturais da terra, Chinas cristão que chamam jurubassas (3), e outras nações todos cristãos e assim os Portugueses como estes, tem suas armas mui boas de espingardas, lanças e outras sorte delas, e raro é o Português que não tem um cabide de seis ou doze mosquetes e pederneiras e outas tantas lanças porque os fazem dourados que juntamente lhe servem de ornamento das casas.
Tem além disto esta cidade muitos marinheiros, pilotos e mestres Portugueses os mais deles casados no Reino, outros solteiros que andam nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassar, Cochinchina, destes mais de cento e cinquenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de cinquenta mil xerafins que por nenhum modo querem passar a Goa por não lançarem mão deles ou as justiças por algum crime (4), ou os V. Reis para serviço de Sua Magestade e assim também muitos mercadores solteiros muito ricos em que militam as mesmas razões.
Tem mais esta cidade capitão geral que governa as cousas de guerra com cento e cinquenta soldados em que entram dois capitães de infantaria, e outros tantos alferes e sargentos, e cabos de esquadra, e um ajudante, um Ouvidor, um meirinho que administra justiça; vence o Ouvidor cem mil réis de ordenado consignados na alfândega de Malaca. E ministros eclesiásticos tem um Bispo que hoje é morto (5) e ainda não está provido (6), que vence dois mil xerafins de ordenado pagos na alfândega de Malaca» (7).” (8)
(1) O balão era uma espécie de almadia na Malásia, escaler ou galeota na Índia.
(2) Manchua era uma embarcação leve na Àsia.
(3) Juru-mestre; bahasá-língua, i. e., «mestre da língua» ou intérprete.
(4) Vê-se que havia cá vários criminosos fugidos da Índia.
(5) D. Diogo Correia Valente, S.J. falecido a 22 de Outubro de 1633.
(6) A diocese ficou vaga até 1690, em que foi nomeado bispo D. João do Casal que governou até 20 de Setembro de 1735, em que faleceu com 94 anos de idade. Ver: https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/d-joao-do-casal/
(7) Bocarro, citado por C. R. Boxer, Macau na época da Restauração, pp. 28-29.
Ver anteriores referências: https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/antonio-bocarro/
(8) Extraído de TEIXEIRA, P. Manuel – Macau Através dos Séculos, 1977, pp. 16-17