Henrique de Senna Fernandes nas suas memórias de Macau de 1934 descritas nos artigos “Cinema em Macau” , recordava:
“O evento social daquele Outono longínquo foi a inauguração da pastelaria “As Delícias“, dirigida por três senhoras da nossa sociedade, as irmãs Menezes, Celeste e Maria, e Ana Teresa d’Assumpção, mais conhecida por Anita d’Assumpção. “As Delícias” ficava na Avenida Almeida Ribeiro, onde hoje se encontra a Livraria da China fazendo esquina com a Rua Central.
A partir da sua inauguração, em 2 de Outubro, passou a ser apoiada pela melhor sociedade macaense, à hora do chá. Alguém dizia que correspondia em Macau à cafeteria Max de Hong-Kong. Descontando o evidente exagero, “As Delícias” era um local chique e elegante, de encontro e de reunião. Faziam-se toilettes para lá ir e não era de bom tom não o frequentar.
A pastelaria vinha satisfazer uma necessidade. Para quem não tivesse o bilhar e as partidas de “má-jong” e de brídge nos clubes e não permanecesse em casa, à hora da merenda, como se dizia em Macau antigo, o único sítio a ir era o Hotel Central. O Hotel Riviera, no entanto, tinha pruridos a hotel inglês, com as ementas nesta língua e os criados mascavando-a com convicção. Esse pseudo ambiente britânico não se coadunava com a vivacidade latina. Tirando a mesa de café do Dr. Carlos de Melo Leitão, à janela frente ao Banco Nacional Ultramarino, onde se reunia um grupo obrigatório para a cavaqueira, lá por volta das duas e meia da tarde, tudo o mais era inglês ou chinês de Hong-Kong. O “United States”, mais popular e terra-a-terra, não satisfazia os elegantes. Comia-se ali um espantoso “kai-si-fán” (arroz de galinha), muito nutriente, dizia – se, para quem viesse das blandícias da Rua da Felicidade, mas não tinha nada de requintado.
“As Delícias” apresentava um ambiente muito português. Os pastéis e os bolos eram divinos e, por todos os lados, só se ouvia o português. Tornou-se um centro nevrálgico de Macau. Quem quisesse conhecer as novidades da terra, os boatos, o diz-se, era para “As Delícias” que se dirigia. Ali pontificavam os avatares da cidade, os que arvoravam em saber de tudo. A expressão “Ouvi ontem dizer nas Delícias…” obteve foros de sacramental. Quem quisesse contactar com as figuras mais em evidência na terra, tinha que se sentar nas mesas de “As Delícias“. E nessas mesmas mesas, muito namoro e casamento se forjaram. “As Delícias” tinha uma verdadeira cor local, numa cidade muito portuguesa e ainda com ressaibos largos da vida patriarcal dos nossos maiores
Lembramo-nos do nosso primeiro encontro com “As Delícias“. Tínhamos vindo do matagal da Guia, onde fomos construir uma “mina” com companheiros. Mal chegámos a casa, a criada disse que os pais nos esperavam na pastelaria. Esquecemo-nos da apresentação e fomos com os joelhos marcados de terra, a camisa amarrotada. O olhar fulo da mãe gelou-nos. Sentámo-nos embaraçado, mas os pastéis dourados de amêndoa e ovos breve nos fizeram esquecer as agruras. Estávamos com fome e, logo à primeira, metemos todo o pastel na boca, com a voracidade típica da adolescência. Outro olhar fulo da mãe e a reprimenda clássica: “Esqueceste as maneiras que aprendeste”. Esta a primeira recordação de “As Delícias“.” (1)
FERNANDES, Henrique de Senna – Cinema em Macau (1932-1936). Revista de Cultura N.º 23 (II Série) Abril/ Junho 1995. Instituto Cultural de Macau, pp. 133-170.