“Eis o que se passou ontem.
Lei Man, um amigo meu, encontro-me sentado a uma das mesas do «dancing». Sentou-se também e comunicou-me que desejava apresentar-me a uns amigos de Cantão que tinham grande interesse em conhecer o ajudante do governador.
Convinha um sítio recatado, fora das vistas do público. Lai Man, com a fisionomia mais calma do mundo – nunca o vi alterar-se – expôs ràpidamente a a natureza do negócio, sem deixar de olhar distraídamente os pares que dançavam, pelo meio da sala.
Os seus amigos eram capitalistas que tinham explorado o jôgo em Cantão; com a proibição de se continuar ali o negócio, vinham a Macau para aqui se estabelecerem. Queriam que o jôgo lhes fôsse dado sem ir à praça e ofereciam uma avultada renda. Saímos; e fomos ao tal sítio recatado onde nos esperavam.
Uma viela estreita e uma casa sombria. era de facto o que Lei Man tinha dito. Ofereciam a renda de um milhão e oitocentos mil dolares anuais, depositavam a caução respectiva e dava-me duzentos mil dolares – e apenas duzentos mil …- se eu conseguisse, junto do Governador (1) que o jôgo lhes fôsse imediatamente entregue, dispensando-se a praça, e perguntaram-me quanto pensava eu que deveriam oferecer ao Governador.
A cêna foi apenas esta: nada mais lhe acrescentarei para a deixar aqui tôda a sua magnífica nudez.” (2)
(1) O Governador era João Pereira Barbosa. Foi nomeado Governador interino em 4 de Janeiro de 1936 e cessou funções a 24 de Dezembro de 1936. O Dr. João Pereira Barbosa seguiu depois para Goa onde foi Director dos Serviços de Administração Civil.
Aliás conta-se que Pedro José Lobo, braço direito de todos os governadores do seu tempo excepto de um… precisamente do Governador João Pereira Barbosa, que o mandou prender e acabou talvez por isso, … por ser “demitido”. Recorda-se também que foi nesse ano de 1936 que a importação do ópio cru e sua posterior preparação foi colocada sob o exclusivo do Governo de Macau, fechando-se o licenciamento para mais fumatórios de ópio no Território (3)
(2) SANTA CLARA, António de – Cartas do Extremo Oriente. Parceria António Maria Pereira/Livraria Editora, Lisboa, 1938, 230 p. + |1|, 19 cm x 12 cm.
António de Santa Clara que foi para Macau como ajudante do Governador, dedicou o livro:
“A João Pereira Barbosa, com admiração pela maneira como governou Macau”
(3) SILVA, Beatriz Basto da – Cronologia da História de Macau, Século XX, Volume 4. Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, Macau, 1997, 454 p. ISBN-972-8091-11-7
Sobre António de Santa Clara, ver meu post anterior: LEITURA – LITERATURA ULTRAMARINA – A LORCHA
https://nenotavaiconta.wordpress.com/2012/05/08/leitura-literatura-ultramari-na-a-lorcha/